8 de outubro de 2008

Farol de Lugar Nenhum

A grama é verde. Mas não lá. Nada naquele lugar era verde. O mar sempre azul, a areia amarela, o coqueiro amarelado, cabelo e barba brancos, o barraco com cheiro de café passado. Café nunca tem o tom verde.
O farol sempre foi cor de maresia, cor de cinza-nada com bege. Seus dentes eram amarelados, suas roupas um dia brancas, o cachimbo pitado pela manhã transitava com o cheiro do café. O farol foi sua única companhia por tanto tempo que nem o tempo sabia quanto tempo ele tinha.
Ele fazia daquele farol seu Deus, seu animal de estimação, seu relógio, seu lugar e seu compromisso. Gostava de deitar sobre a areia dura, perto das ondas rasas e balançar mãos e pernas, confundindo-se com elas. Parecia se eternizar, sabendo que as areias ficariam ali muito mais tempo que ele e que naquele momento eles eram um único corpo, sem órgãos, sem idade e sem dores. E ele sorria, gargalhava e soltava frases de sua juventude.
Religiosamente, uma vez por semana o velho barbudo recebia ‘boa tarde’ do carteiro, que, de tantos que passaram e morreram, ele nunca soube o nome desse último. Que sempre chegava sorrindo em um barco ensurdecedor.
Certo dia, pela primeira vez, ele recebe uma carta desconhecida. Até o carteirinho quis saber de onde vinha. O velho entra no barraco com ela em mãos, coloca sobre a arca ao lado de Iemanjá, com o cachimbo apagado no lado direito da boca ele nada faz. Deu alguns passos rápidos, mas o carteiro e seu barco estrondoso já haviam partido. Ele pega a carta e sente o papel sem sobrenome, sem cor e sem odor.
Abre o envelope com tanto zelo que parecia estar trocando uma pequena lâmpada daquele velho farol. Exala-se o aroma de grama com flor. Ele puxa o papel, enxerga apenas poucas letras estranhas, procura seus óculos e começa a leitura: “Sou da ilha do outro lado, ouço sua voz e suas gargalhadas pelas ondas há tanto tempo que nem sei. Gostaria de te conhecer, mas a timidez nunca permitiu. Com carinho, Conceição”. Por um segundo, ele sentiu o farol desmoronar.
Com um meio lápis, ele procura suas folhas esquecidas e começa a escrever nada. Não conseguia, sentia-se na obrigação. Algo que parecia se igualar às luzes longínquas daquela imensa lanterna que ele amava. Ele quase não dormiu, mas sonhou.
Nunca uma semana havia significado algo, mas aquela demorou anos, parecia. Tempo depois, ele, deitado e coberto de areia, ouve o barulhento barco do carteiro. E aquele barulho soava como música de vento composta por passarinhos e tocada pelas gaivotas afinadas. Era ele, o carteiro. E ele sorri, corre, busca sua carta e nem espera o carteiro pisar em terra firme. Lança-se na água morna e entrega ao rapaz. “É para a Conceição, para a Conceição. Vá, agora vá”.
O velho começou a enxergar cores na areia, o coqueiro ganha cheiro e o farol não mudou, apenas perdeu um pouco de luz. O café estava mais gostoso.
Pouco tempo depois, mas parecendo três vidas de areia, o som musical daquele barco colorido começa a surgir. O carteiro apontava de longe e segurava um pedaço de papel em uma das mãos, enquanto sorria. Ele chega e entrega mais uma carta com cheiro de samambaia e cores de vida. Sua conceição, conforme ele dizia para as nuvens, escrevera mais. “Chorei um mar de alegria com suas palavras. Daqui há seis luas eu te farei uma visita. Com amor, Conceição”. O velho dançou, sorriu e chorou para as estrelas. Conheceu a felicidade e engraxou seu único par de sapatos.
Pela manhã, lavou seu palitó, sua calça larga de linho e costurou a meia xadrez. Cantarolou de causar inveja na cigarra. Passaram-se cinco luas. É amanhã, ele pensou.
Acordou, subiu no farol e chorou lamentos de despedida. Um adeus para nunca mais. Aquelas luzes que ajudavam grandes navios a milhas de distância já eram fracas para caber nos olhos iluminados daquele pobre velho.
Passou a tarde em um longo banho feliz, beijava a água murmurando Conceição. Abraçava o cabide e dançava com seu palitó. Vestiu-se, como quem se arrumava para a morte. Por fim, calçou os sapatos, saiu do barraco e fixou os olhos no mar a fim de observar qualquer barco que pudera. O Sol estava se pondo, e também toda sua dor que ele nunca conheceu. A noite vinha lentamente e ele continuava em pé, com o mesmo sorriso, o mesmo olhar esperançoso. Alinhava sua gravata, puxava sua calça. As horas passavam e ele sabia que sua Conceição estava a caminho.
O velho dá alguns passos, leva suas mãos em torno da boca e grita com toda sua força: “Não tenha medo, meu bem”. As horas das estrelas estavam chegando, ele deitou em suas areias e adormeceu.
Quando acordou, saltou com o som de um barco. Quando se aproximou era de seu amigo carteiro. Ele limpa a areia de seu terno, ajeita sua gravata e antes que comece a falar o rapaz diz: “Soube da velha Conceição? Estão dizendo que essa noite ela entrou no mar e não voltou mais. Coitada, tanto tempo sozinha, deve ter enlouquecido”. O carteiro volta para seu barco e vai embora.
O velho deita na areia e, pela primeira vez, sentiu a grama. Seu corpo virara grama. Grama verde e com cheiro de vida.

18 comentários:

Anônimo disse...

Era uma vez a história daqui:

A Esperança de Qualder dos 5 ser um Poema de Amor Tão Quanto Farol de Lugar Nenhum. Será?

O Mensageiro, Antenado, disse que sim. Podendo até virar uma Eterna Canção.



Thaylan :)

Gabriela Galvão disse...

Alfa e ômega, entre eles, o infinito. (Ai que brega!, hah!)

Viu, li este e depois do mais antigo ao mais recente e acho que 'soh fez melhorar'.


Abração

Paixão, M. disse...

aiaiai, meu deus, que coisa linda! muchacho, sua sensibilidade encanta. e... conceição! conceição... :)

por favor, não demoremais 838 anos pra atualizar. a gente sente falta, poxa!

dale, muchacho!

besitos da Pajón!

Lídia disse...

Lindo, lindo. Adorei...

Será que a grama e o mar se encontram numa outra vida?

Adorei seu blog e a visita.. Voltarei aqui mais vezes tbm, certamente!

Besos!!

Flávia disse...

Seu conto, tão lindo apesar de dolorido, me fez pensar em todos que caminham paralelos nessa vida, e que jamais, mesmo que se cruzem, têm a chance se se tornar um. E sim, muitas vezes só temos a sensação de que há vida quando esta nos rasga o peito de dor, ou de outro sentimento tão cortante quanto.

Fico feliz que tenha gostado do continho postado em meu blog - e fico feliz em ver que suas palavras-espelho estão de volta. :D

Beijos, moço.

Daniel. disse...

bem escrito, caetano, o ritimo do texto simula bem a monotonia do mar e da solidão, essas ondas que vão e voltam no fluxo e refluxo da vida e desse abençoado eterno-retorno, ou seria amaldiçoado, essa pergunta foi feita pelo diabo, como bem sabes...mas saudações à ti e a tua poesia morna

Cineclube Jece Valadão disse...

que liiindo cae
nem sabia que vc ainda atualizzava aqui
que desatualizada eu rs
voltarei
:)

Ju disse...

áh, meu Deus... que texto lindo, triste e belo!!!!
parabéns, amei.
beijos!
:)

Aline Sprite disse...

:)

Tudo ou nada ... disse...

Saudade daki cara... estou de volta
Abraços

David José disse...

Velho parceiro Caetano ... Bom encontrá-lo dessa forma, pela escrita ... muito bom texto.

Um abraço
david

Rose Tunala disse...

Olá poeta!

Encontrei seu link nas fotos do ENCUCA no Orkut, vim lhe conhecer e gostei de seu trabalho.
Sou também de Cachoeiro, convido você para vir conhecer minhas letras.

Beijos

Flávio Borgneth disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flávio Borgneth disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Flávio Borgneth disse...

“...naquele momento eles eram um único corpo, sem órgãos, sem idade e sem dores. E ele sorria, gargalhava e soltava frases de sua juventude”..., “cheiro de samambaia e cores de vida”...
Rapaz, fazia tempo que não lia nada na internet por tanto tempo. Como era você o autor, achei que o final pareceria com seu dono. Pensei em encontro e felicidades, encontrei areia e mar triste. Ainda bem que isso também é vida.
Bonito! Parabéns!

Sylvia Araujo disse...

Deslumbrante tanto cheiro e tanta cor. E quando elas se misturam, então... touché!
Gostei do teu-tom.
Beijocas

Anônimo disse...

Caetano, eu espero que você não tenha lido Dostoievski ainda, do contário vai demorar muito para aprender a descrever.

Anônimo disse...

qta sensibilidade! fiquei encantada!